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A Natureza original da Humanidade é o Despertar

Texto incluído na edição #5 da revista Budismo – Uma Resposta ao Sofrimento (Outubro, 2021)

No Zen, um Retiro – Sesshin – é uma oportunidade de Despertar.
As sesshin, em todo o mundo, têm origem na tradição dos três meses de verão das monções em que, pelas chuvas, toda a Sangha se reunia num lugar abrigado para praticar.

Manuel Toei Simões

Uma sesshin, um retiro, quer dizer tocar o espírito, trata de tocar-se a si mesmo, tornar-se íntimo consigo próprio.
Aprofundar a prática.
As condições exteriores quase nunca dependem de nós. As condições exteriores podem ser favoráveis ou adversas. O que sempre está ao nosso alcance são as condições interiores. A atitude de espírito. Tranquilizar a mente, fazer o silêncio interior, tornar-se íntimo consigo mesmo, não alimentar qualquer classe de pensamentos, positivos ou negativos, isso sim, depende de cada um, de cada uma.

Escutar ou não o cantar do cuco, percepcionar os pássaros que voam, sentir o cair das agulhas dos pinheiros, isso está ao nosso alcance. Está nessa linha entre o nariz e o umbigo. Independentemente de quais sejam as condições exteriores que se nos apresentem, sentar. Sentamo-nos com a coluna bem erguida, bem direita, queixo ligeiramente entrado, e um olhar pousado a 45 graus, um olhar virado para o interior.

E seguimos a nossa expiração, concentrados nesse vai-e-vem da expiração, sem alimentar qualquer espécie de pensamento. Deixar passar. Deixar passar é dar tudo, é entregar absolutamente tudo, uma e outra vez, a cada momento.

Sesshin que dizer, também, seguir. Seguir o ritmo da própria sesshin, harmonizar-se, abandonar o ritmo do dia a dia, do quotidiano, e voltar-se para um ritmo interior. É seguir a respiração cósmica, seguir a respiração do planeta, esse gigante ser vivo do qual somos parte, como um todo, sem pensar em histórias individuais. É seguir essa grande expiração cósmica, a nossa própria expiração.

Harmonizar-se com os outros. Harmonizar-se com os outros é harmonizar-se consigo próprio, não há nenhuma discriminação. Então, quando abandonamos o nosso ego e seguimos a respiração cósmica, já não há exterior nem interior, há apenas unidade.

Zazen é esta unidade corpo-espírito. Unidade da respiração e da mente. Seguir a respiração do planeta, do cosmos, do universo. Esta prática, o zen, a prática do zen – zazen – remonta ao Buda histórico, Siddhartha Gautama. Aqui, hoje, neste momento, neste instante, actualizamos a postura de Buda, a sua prática. A mesma prática.

Como sabemos, Siddhartha Gautama abandona a sua casa e retira-se na floresta, numa procura, numa busca, num caminho. É essa busca, essa procura e esse caminho que actualizamos cada um de nós, hoje, aqui. As sesshin, em todo o mundo, têm origem na tradição dos três meses de verão das monções. Era impossível a Buda e aos monges fazerem itinerância, devido às chuvas torrenciais, e por isso juntavam-se todos num abrigo durante esses meses de chuva. Era aí que recebiam as instruções, o ensino oral, a transmissão.

Essa transmissão que chega até nós e que há-de continuar para além de nós, mais além de nós. Conta-se que Buda chega um dia, já cansado e no final da sua vida, ao Pico dos Abutres, e senta-se numa grande assembleia com a totalidade dos seus discípulos e muita gente, qualquer gente, qualquer pessoa que acorria a escutar os seus ensinamentos. E nesse dia Buda permanece silencioso. Nem uma palavra. Num instante, num gesto, agarra uma flor e roda entre os seus dedos a haste dessa flor. E há um discípulo, Kasyapa, que olha e retribui o sorriso do seu mestre. Um gesto, uma flor, um sorriso. Um instante, eterno, até nós. Então Buda ergue o olhar e diz: “Tenho na minha mão o Olho do Tesouro da Verdadeira Lei, o Dharma. Que abre a porta sem porta, que permite aceder ao íntimo de cada um.” E transmite-o a Kasyapa, retirando-se. É esta a transmissão que chega até nós. O Olho do Tesouro da Verdadeira Lei, que existe em cada um e em cada uma. Que cada um já tem – já é completo, em unidade, sem separação. Desde a origem, a Via, o caminho, o Dharma, é redondo e perfeito. Nada está em falta, nada está em excesso.

Na Via, no cosmos, no universo, em cada ser, em cada um de nós, nada está em excesso, nada está em falta.
Conta-se, numa história zen, que estavam dois monges no templo à conversa. Repentinamente, diz um: “Vês? Vês como se agita o sino?”. E o outro, mais velho, com mais tempo de prática, responde-lhe: “Não, não é o sino que se agita. O que se agita é o vento”. E passa o mestre, no meio desta conversa, olha os dois e diz-lhes: “Não, não. O que se agita é a vossa mente”. Não se mover, não se agitar. Deixar passar.

Quando Bodhidharma, um monge zen, atravessa a Índia e leva o zen para a China, tem uma entrevista com um imperador. O imperador era um protector do dharma, havia mandado construir muitos templos, protegido muitos monges e mandado trazer da Índia e traduzido muitos livros, muitos sutras. Então, Bodhidharma chega e apresenta os seus cumprimentos ao imperador. O imperador diz-lhe: “Eu, que mandei erguer tantos templos, que traduzi tantos sutras, que méritos tenho?” E Bodhidharma responde: “Nenhuns méritos!”. Uma resposta destas, perante todo o poder que o imperador tinha, era atrever-se a muito. “Mas então…?”, diz o imperador. E Bodhidharma acrescenta: “São acções feitas com um propósito, com uma intenção. Contêm em si o desejo de proveito próprio – o mérito”. Então, pergunta o imperador, “qual é a santa doutrina que nos trazes, Bodhidharma?”. E Bodhidharma responde: “Não há nada de sagrado neste vasto e infinito dharma. Não há nada que procurar, nenhum espírito de proveito próprio – sem intenção”.


O zen trata-se de sentar-se, sem procurar nada, sem nenhum espírito de proveito próprio. É ser como um espelho que reflete o que se apresenta, tal como é. E quando essa imagem desaparece, o espelho fica vazio para permanentemente poder refletir a totalidade das coisas.

Dogen repetia muitas vezes que não há que perder tempo sentado sobre o zafu negro. Há um par de dias, apanhei o autocarro 608 ou 609. E na parte final da viagem ajudei um senhor que já deveria ter quase 90 anos. Ajudei-o a descer o autocarro. A primeira coisa que me disse quando fui para ajudá-lo foi: “Eu posso, eu posso…”. Então, carreguei-lhe um saco e ajudei-o a descer as escadas. No final, já na rua, o senhor disse: “Sabe, há muitos anos, quando eu era novo, sempre dizia que não podia. E agora, que sou velho, penso sempre que posso”. E disse-me, para terminar: “Sabe, realmente quando eu tinha força e podia, e podia mesmo, eu pensava sempre que não podia. E agora, que estou velho e sei que já tenho pouca força, penso sempre que posso. E no fim nunca posso bem”.

Não sei se isto para vocês faz algum sentido ou não; sei que, para mim, naquele momento, fez todo o sentido do mundo. É aquilo que Dogen dizia. Não perder tempo, não perder tempo. Sentar-se e puf… instalar-se. Instalar-se no centro do universo, no centro de cada um, de vocês mesmos. E a partir daí tudo se pode.

Dogen foi quem trouxe o zen da China para o Japão. Era um monge japonês que decidiu ir à China em busca da verdadeira Via. Decidiu não perder tempo e foi ele em busca da Via. Quando regressou da China para o Japão, perguntaram-lhe: “Que trazes tu?”. E ele respondeu: “As mãos vazias. Talvez tenha aprendido que o nariz e o umbigo são na vertical. E que os olhos e os ouvidos são na horizontal”.

Esta “coisa” maravilhosa que nos foi transmitida, que começámos por chamar zen, zazen, ou, à falta de melhor nome, “simplesmente sentar-se”. Esta pérola brilhante, este diamante, sempre está aí. Simples, ao alcance da mão de uma criança. Percebemos que começou com o Buda histórico, que depois saltou para a China, o Japão, e hoje é património comum de toda a Humanidade. Quando dizemos Buda, queremos dizer Natureza, natureza original. Também se pode traduzir como natureza de criança. Natureza simples, direta, autêntica. Se não a complicarmos, se não nos enredarmos nas nossas ilusões mentais, permanece natureza original, simples, clara, transparente, brilhante.

Não tem dogmas, não depende de escrituras, é realizada diretamente, de coração a coração. Sem intermediários. Então, é uma atitude, uma postura justa, um equilíbrio. Equilíbrio entre a ponta do nariz e o umbigo. Postura, atitude de espírito. Atitude de espírito não é nada transcendente, não é nada no sentido comercial de hoje, no sentido de espiritual. No zen, somos muito precisos. Quando dizemos espírito é espírito, do latim spiritus, que quer dizer respiração – tornar-se a nossa própria respiração, a cada momento, onde nos encontrarmos, aqui e agora.

Então, como dizia Kodo Sawaki e Deshimaru, não há diferença entre zazen e a nossa vida quotidiana. A atitude que temos no dojo é a mesma da vida quotidiana. Não há separação. No zen nunca há separação. No Zen, a condição normal do ser humano é Despertar, quer dizer, a Natureza original da Humanidade é o Despertar.

Gasshô, juntar os opostos, juntar a dualidade – unificar.
Cuidem do vosso silêncio.

Pode fazer aqui o download desta edição:
https://www.budismo.org.pt/download/revista-5-outubro-2021/