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Aqui e Agora, no olho do furacão

Texto incluído na edição #3 da revista Budismo – Uma Resposta ao Sofrimento (Março, 2021)

Gostava muito de vos poder dar algo, alguma coisa a que, nestes tempos, nos pudéssemos agarrar, mas no zen, não temos absolutamente nada.

Keizan Jokin (Monge Zen)


*
Um espectro percorre todo o planeta Terra. O espectro do isolamento.
Devemos, no dharma, transformar o confinamento em Retiro.

*
Repentinamente, aí estão.
A impermanência, a morte.
Tudo muda, tudo se transforma, a todo o momento. Sempre. Alegria em tristeza. Vida em morte. Sofrimento em
felicidade. Todo o tempo.
A interdependência, todos estamos relacionados, com todos. Ninguém é por si mesmo. As atitudes de uns têm
implicações, consequências, na vida de outros. Sem princípio nem fim.
Vivemos tempo emergentes.
Um furacão percorre a nossa casa comum. A humanidade. Esta espécie tão brilhante e, simultaneamente, tão
devastadora, como um vírus, para outros seres, para o Planeta.
Isto é a insubstancialidade das coisas. Vacuidade. Vazio coletivo.
É por isso urgente, regressar a casa. À nossa natureza original. Íntima. Não-nascida, diz-se no Zen, sem contaminação.
Regressar a casa, na nossa prática é conhecer diretamente.
É Despertar. Aqui e Agora. Todo o tempo. Sem princípio nem fim.
É pacificar a mente no olho do furacão.

*
Continuar a prática. Todo o tempo.
Sem princípio nem fim.
Continuar a prática, hoje, agora e aqui é experimentar a impermanência, de que falamos demasiadas vezes, sem nos
darmos conta, das coisas tal como são.
Estamos vivos, respiramos, juntamos as mãos, agradecemos. Gassho!
Essa extraordinária, magica e poética aventura que é a vida. E a morte. A impermanência das coisas, dos seres, do cosmo.
Continuar a nossa prática, simplesmente sentar-se. Respirar. Agradecer.
Erguer-se, endireitar a coluna e fazer o que tem que ser feito. Agir, a partir do não-medo. Ajudar. Ser solidário com
todo o sofrimento.
Fazer isso, conscientemente, momento a momento, na vida quotidiana, no meio desta pandemia é o nosso ZaZen
dos tempos que correm.
Fazer isso é continuar a prática. Continuar a prática no olho do furacão. É não perder tempo. É perceber também a interdependência, de todas as coisas. Que todos dependemos de todos.
Que vida e morte sempre estiveram aqui. Á frente dos nossos olhos.
Todo o tempo. Sem princípio nem fim.

*
Praticar o Zen é lavar as mãos.
Cuidar de si próprio. De todos. Todo o tempo.
Nenhuma diferença entre ZaZen e vida quotidiana, entre pratica e despertar.
Um furacão percorre o mundo.
Agora que, repentinamente, a realidade choca frontalmente contra as nossas ilusões, de um crescimento ilimitado à
custa da depredação infinita, de tudo e de todos no planeta.
Aqui, onde estamos, debaixo dos nossos pés, vida e morte apresentam-se a cada instante. Sempre.
Juntar as mãos, no colo. Mão esquerda sobre a direita, os polegares tocam-se. Nem montanha, nem vale, uma ponte.
O Universo nas tuas mãos.
Uma ponte de solidariedade. De tranquilidade. Paz. Equilíbrio. Equanimidade. Sem princípio nem fim.
Um furacão extraordinariamente longo e veloz, que nada deixa no sítio de antes e, como em qualquer furacão o
conselho é sempre:
Ficar em casa.
Minimizar o sofrimento.
Aquietar o corpo. Pacificar a mente, a partir do não-medo. Assim, quando a mente repousa serenamente, na unidade de todas as coisas, a dualidade desaparece naturalmente.
E, naturalmente, a condição normal, de todos os seres humanos é despertar.
Sempre. Todo o tempo. Sem princípio nem fim.
Isto é, pacificar a mente no olho do furacão.

*
O Zen é encontrar a raiz.
A raiz das coisas. A origem do sofrimento.
Quando falamos sofrimento falamos do sofrimento individual, do nosso, de cada um, falamos do sofrimento dos outros, do sofrimento social, do descontentamento social, do tipo de sociedade em que vivemos.
Do sofrimento que produzimos aos animais, do modo de vida que produz sofrimento, do sofrimento da terra, do
planeta, da desarmonia que cultivamos hoje, dos pesticidas.
Portanto o sofrimento não é só individual, é um sofrimento dos outros também, é um sofrimento da terra, do
planeta, do cosmos.
Todo o tempo.
Sempre queremos que a realidade seja tal qual nós queremos! Que aquela pessoa goste de nós, que a erva ruim
no campo não cresça, que cresça a flor, que o tempo chova (ou não chova), esta é a realidade que nós construímos na
nossa mente, mas a realidade apresenta-se, sempre, a todo o instante, exatamente tal qual é.

*
No olho do furacão um vírus de plástico.
Como sabemos o plástico mata. Mata nos oceanos, mata agora com o vírus dos nossos tempos plásticos.
Ao que parece, a superfície em que este vírus, ao contrário de outros, mais tempo subsiste, sem degradar-se, é o plástico. Ironia do nosso modo de viver, de estar na vida, de contaminar o Planeta.
Agora, que todas as mortes contam, há que regressar ao principio ahimsa, cuidar todas as formas de vida. É a
não-violência, a paz, a pacificação dos conflitos, é ser solidário, compassivo, amoroso e gentil com todos os seres.
Cuidar da água, do ar, da terra.
Na nossa prática, na vida quotidiana. Nos gestos diários, no modo de viver, de relacionar-se, com todos, com a
natureza e com o planeta. Despertar.
Despertar a consciência global.

*
O zen sempre teve esse lado ecológico.
O lado da preservação das coisas.
Modo de vida correto. Meios de subsistência adequados. Atenção e Meditação verdadeira.
Mestre, porquê não vestimos todos algo que nos identifique?
Conta-se também que naquele momento passavam por uma espécie de cemitério de tecidos velhos e sujos: os lençóis dos hospitais, os panos da menstruação das mulheres, os tecidos onde enrolavam os mortos antes se serem cremados. Buda, olhando à sua volta, sugeriu:
Recolham estes tecidos, cortem, utilizem as partes boas, costuremos e façamos com isso aquilo que vamos vestir.
E que cor deve ter o nosso hábito? insistiram.
Como ia a olhar para o chão, respondeu:
Que seja da cor da terra.
E a forma?
Levantou o olhar, em frente havia muitos campos de arroz.
Pois que tenham a forma de um campo de arroz, respondeu
.”
Por isso são assim cosidos os hábitos dos monges zen.
Há aqui uma grande preocupação de preservar, de recuperar e reutilizar as coisas.
Trata-se de comer apenas o suficiente, de ter uma vida simples, de viver apenas com o indispensável. Tudo isto, aquilo que hoje chamamos de ecologia, já está presente, desde os inícios, na nossa prática.
Todo o tempo.

*
O Zen é uma prática, com o corpo.
Bios. Corpo-mente. Também o corpo coletivo. A vida quotidiana, a relação consigo mesmo, a relação com os outros, com a natureza, com o mundo.
Simplesmente sentar-se, sem nenhum espirito de proveito próprio. Endireitar a coluna, endireitar a postura face à vida. Respirar. Deixar passar absolutamente tudo, bom ou mau.
Não há nada que procurar.
Situar-se aqui e agora, no momento presente. Isto é tudo o que temos.
Este corpo, esta vida a decorrer neste momento, no olho do furacão.
Já bebeste o teu chá?
Então, vai lavar a tua taça!

Todos temos a mesma natureza.
Todos somos iguais. Solidários. Compassivos. Amorosos. Como se diz no zen, a mesma natureza original. A natureza do despertar.
Todo o tempo. Sem principio nem fim.

*
De certo modo estamos completamente loucos.
Meio mundo anda a querer regressar ao normal, como se regressar no tempo fosse possível…
Será normal o nosso comportamento quotidiano?! Consumir mais, milhares de toneladas de detritos, conspurcar os
oceanos, provocar o aparecimento de um vírus, possuir, possuir, possuir.
É isso o nosso comportamento normal, a nossa vidinha de sempre, pensamentos, pensamentos e pensamentos
centrados em nós próprios, no nosso ego, eu, posso, quero, meu.

*
Ryokan, um monge e poeta zen, mestre zen, escreveu um poema que dizia:
Vivo na minha pequena cabana
rodeada de ervas
no entanto a minha pequena cabana
é do tamanho do mundo
nela cabe todo o universo
.

Aquilo que chamamos budismo… budismo é uma palavra do séc. XX, ocidental, em nenhum texto antigo há algum
budismo – a palavra é Dharma.
Dharma pode-se traduzir como aquilo que sustenta, aquilo que une, no Dharma existem as quatro nobres verdades
e a seguir às quatro nobres verdades vem aquilo que se chama o óctuplo caminho.
Aí encontramos que há que ter um modo devida correto, com meios de subsistência adequados, para os monges zen isso é fundamental, ao que se acrescenta uma prática correta.
Ryokan era assim, vivia numa pequena cabana, suficiente para ele e também para o mundo, onde cabia todo o Universo. Cultivava as ervas que cresciam à volta da cabana, era o seu modo de vida, sentava-se em Zazen no meio da
natureza e escrevia poesia.
Nada de normal, portanto.

*
No Dharma diz-se que é preciso deixar coisas, abandonar, viver de forma simples, sem muita tralha. Tralha na minha aldeia também quer dizer viver sem muita coisa na cabeça, o melhor é mesmo abandonar a tralha toda, tanto a da caixa dos pensamentos como a trabalha que queremos possuir.
Mas quando dizemos isso parece que a humanidade o que abandona é a parte humana, a solidariedade, a compaixão,
os traços mais humanos, o contacto com a natureza, as coisas simples, pequenas, as plantas.
Jogamos isso tudo às urtigas.
Queremos centros comerciais e comida enlatada e bons carros, e a nossa vidinha normal.

*
Que felicidade poder observar o Universo.
O rio, o sol, montanha, mar, a grande e companheira lua.
A magia, a magia da vida a acontecer.
Que magia poder olhar as estrelas. Uma vida correta de acordo com a natureza e meios de subsistência adequados.
Tenho receio.
Receio e esperança, não sei se dentro de cem ou duzentos anos, não sei mesmo se os pós-humanos, se a inteligência artificial não será ela própria mais humana que a nossa própria humanidade normal.

Somos ondas do mesmo mar
folhas da mesma árvore
flores do mesmo jardim
.
(escrito nas caixas de máscaras, enviadas pela China para Itália, em tempos de pandemia)

Pode fazer aqui o download desta edição:
https://www.budismo.org.pt/download/revista-3-marco-2021-budismo-uma-resposta-ao-sofrimento/